Um trajeto de quase mil quilômetros de ferrovia que atravessará o centro do país em meio a áreas de proteção e a territórios indígenas onde vivem, inclusive, povos isolados. Esse é o projeto da Ferrogrão (EF-170), obra monumental que é a menina dos olhos de grandes produtores de soja e milho do Centro-Oeste do Brasil, com a promessa de fortalecer a nova rota de escoamento pelo Arco Norte do país e reduzir custos.
O transporte é feito hoje por caminhões que trafegam pela BR-163, rumo aos portos localizados nos municípios paraenses de Itaituba, Santarém e Barcarena. Com traçado paralelo à rodovia, a Ferrogrão tem como promessa reduzir os custos de transporte do agro, mas a um preço alto para os povos tradicionais e para a agenda brasileira de mudanças climáticas.
É mais um caso que divide ministros de Lula. Desta vez, justamente no estado que será palco da COP-30, em 2025, quando o presidente da República gostaria de exibir resultados positivos no combate ao desmatamento e nas emissões de gases de efeito estufa.
“Se eles não nos consultarem, a gente vai criar uma aldeia na linha do trem, aí quero ver se eles vão passar em cima da gente”, afirmou à reportagem Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu, que representa 12 comunidades do povo Mẽbêngôkre-Kayapó distribuídas entre as terras indígenas (TIs) Baú e Menkragnoti e duas comunidades da TI Panará. O território está na área mais impactada pelo traçado da ferrovia, segundo análise exclusiva feita pelo Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo. Para agravar a situação, este é também o espaço utilizado por três povos isolados: Pu’rô, Isolados do Iriri Novo e Mengra Mrari.
O levantamento feito pela reportagem em parceria da InfoAmazonia e O Joio e O Trigo expõe como, ao todo, ao menos seis terras indígenas, onde vivem aproximadamente 2.600 pessoas, e 17 unidades de conservação estão na área delimitada, que abrange 25 municípios do Mato Grosso e do Pará, com população estimada em quase 800 mil pessoas. Considerando uma zona de amortecimento de 10km no entorno dos territórios, a ferrovia incide sobre mais de 7,3 mil km² de terras indígenas e ultrapassa 48 mil km² sobrepostos às unidades de conservação.
A análise também considerou uma área de 50 km no entorno da Ferrogrão, tendo como base o traçado disponibilizado no Banco de Informações de Transportes do Ministério dos Transportes e os dados de desmatamento do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), referentes ao período de 2008 a 2022.
Essa área de influência maior tomou como base a nota técnica apresentada pelo Instituto Kabu à Funai em novembro de 2019, que alerta para as pressões diretamente relacionadas ao processo de pavimentação da BR-163 nesse perímetro – e que podem se agravar a partir da construção da ferrovia.
No lado paraense da ferrovia, diz a nota, um trecho de quase 380 km (40% do total) está a menos de 50 km das terras indígenas Baú, Menkragnoti e Panará, “onde os índices de desmatamento mantêm-se extremamente elevados desde que teve início a pavimentação da BR-163”. A área de influência da BR-163 é de 40km em torno da rodovia, previsão para esse tipo de empreendimento na Amazônia Legal segundo a Portaria Interministerial nº 60/2015.
Apresentado durante a gestão de Jair Bolsonaro, em novembro de 2020, o estudo de impacto ambiental (EIA) da Ferrogrão elaborado pela empresa MRS Ambiental considerou apenas duas TIs dentro da área de influência do empreendimento: as reservas Praia do Mangue e Praia do Índio, localizadas no município de Itaituba e habitadas pelos Munduruku.
O estudo tomou como base o termo de referência emitido em setembro de 2019 pela Fundação Nacional do Índio (Funai) – presidida pelo delegado Marcelo Xavier, hoje investigado por uma série de crimes cometidos contra povos indígenas, incluindo o genocídio dos Yanomami. O documento considera a distância de dez quilômetros em torno do traçado da ferrovia, seguindo a medida estipulada para esse tipo de empreendimento pela mesma portaria de 2015.
O asfaltamento avançou sob o governo Bolsonaro: chegou até Novo Progresso no final de 2019 e foi concluído até Miritituba em fevereiro de 2020. Responsável pela execução dos recursos do Plano Básico Ambiental (PBA), principal condicionante prevista no estudo de impacto ambiental da rodovia, o Instituto Kabu não recebe repasses federais desde 2020.
Entre 2010 e 2019, os projetos eram decididos de forma conjunta entre as aldeias associadas ao instituto, com a fiscalização a cargo da Funai, que recebia a cada semestre a prestação de contas por parte dos indígenas. “Vai fazer cinco anos que o governo Bolsonaro paralisou tudo, são cinco anos de prejuízo dos nossos direitos”, lamenta Doto Takak Ire.
Em maio deste ano, o Instituto Kabu conseguiu um acordo com a empresa concessionária da rodovia para o repasse emergencial de recursos, enquanto aguarda novos estudos da Funai para a retomada do Plano Básico Ambiental.
Projeto do agronegócio
Com o início da operação do Porto de Miritituba, em Itaituba (PA), em 2014, e o asfaltamento recém-finalizado da BR-163, o escoamento de grãos do Mato Grosso pelos portos do Pará passou de 5% para cerca de 30%. A estimativa do governador de Mato Grosso, Mauro Mendes (União Brasil), é que a Ferrogrão absorva 50% da produção de grãos do estado e uma redução no valor do frete em R$ 50 por tonelada.
O traçado da ferrovia, que liga o município de Sinop, no norte de Mato Grosso, ao porto de Miritituba, foi elaborado pela empresa Estação da Luz Participações (EDLP), que se associou às maiores compradoras de grãos – Bunge, Cargill, Amaggi e Dreyfus – para levar o projeto ao governo federal em 2014.
Encampada pela gestão Dilma Rousseff (PT), a Ferrogrão veio a público com Michel Temer (MDB) – que tinha como ministro da Agricultura o ruralista Blairo Maggi, dono da Amaggi. O empreendimento avançou a passos largos com Jair Bolsonaro (PL).
Doto Takak Ire conta que o primeiro interlocutor com os Kayapó em relação ao projeto da Ferrogrão foi justamente Maggi, durante seu mandato de senador, em 2016. Quando Temer assumiu, os Kayapó não foram mais ouvidos em relação ao empreendimento.
“A gente realmente conversou com o Blairo Maggi, que disse que o governo ia cumprir a compensação. Antes do impeachment, a gente teve uma reunião com o senador. Quando mudou o governo, a gente perdeu o diálogo e não conseguiu falar com mais ninguém. Nem com o governo Bolsonaro.”
A partir de uma ação do PSOL no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Alexandre de Moraes paralisou todos os processos da Ferrogrão para analisar a eficácia da Lei 13.452/2017, originada de uma medida provisória proposta por Michel Temer, que reduz a área do Parque Nacional do Jamanxim para acomodar a ferrovia.
O projeto voltou à discussão pública com a decisão do ministro, em maio deste ano, que determina a retomada dos estudos e processos administrativos e pede que o governo federal faça a conciliação em torno das questões ambientais que envolvem o projeto, mas não se posiciona sobre a redução da unidade de conservação.
“É uma decisão bem particular, porque pede uma conciliação, mas não deixa muito claro qual é o objeto de conciliação”, diz Biviany Garzon, coordenadora do Programa Xingu, do Instituto Socioambiental (ISA). Ela alerta para o risco de a discussão sobre a desafetação de áreas de proteção voltar para o Congresso Nacional.
“Com essa conjuntura de um Congresso totalmente avesso à questão ambiental e sedento de emplacar retrocessos nessa área, a gente tem essa preocupação de que um PL para desafetar o Parque Jamanxim, junto com a audiência de viabilidade do empreendimento, termine sendo o motor para desafetar muitas outras unidades de conservação na região.”
A decisão de Moraes se deu justamente no momento em que os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas foram enfraquecidos pelo Congresso Nacional, com a transferência de atribuições dessas pastas para os ministérios da Justiça e da Agricultura. A tese de conciliação foi trazida por Moraes também na recente discussão, no STF, sobre o marco temporal da demarcação de terras indígenas.
Apesar da forte ênfase na questão ambiental que marcou a formação do atual governo, o ministro dos Transportes, Renan Filho (MDB), defende publicamente a Ferrogrão desde que assumiu o cargo. Ele elogiou a decisão de Moraes e sinalizou que pretende aproveitar os estudos já realizados sobre a ferrovia e buscar um acordo sobre a questão ambiental em torno do projeto para lançar o edital de leilão já em 2024.
Os estudos de viabilidade econômica e de impacto ambiental feitos para o projeto, porém, são alvo de questionamentos, inclusive dentro do governo. O Ministério dos Povos Indígenas aponta que a consulta aos povos originários afetados pela obra não foi contemplada no projeto da Ferrogrão.
Como principais ameaças às populações no entorno do traçado, a secretaria aponta o aumento da incidência do assédio do agronegócio às aldeias, o aumento da extração de madeira e pesca ilegais dentro dos territórios indígenas e de áreas protegidas, assim como o aumento da dificuldade para que grupos indígenas tenham seus territórios reconhecidos.
Procurado pela reportagem, o Ministério dos Transportes informou, por meio de nota, que trabalha junto à Infra S.A. e à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) em um diagnóstico sobre as necessidades de atualização e complementação dos estudos realizados, “com priorização para as questões socioambientais”.
Por determinação de Lula, diz a nota, o ministério atua para que todos os seus empreendimentos de transportes “tenham sustentabilidade socioambiental, respeitem a legislação vigente e, ao mesmo tempo, atendam às demandas das comunidades locais”.
“Não é diferente com a EF-170. A pasta vai discutir as questões ambientais necessárias, que precisam ser enfrentadas por todas as áreas interessadas do governo federal, como os ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e o dos Povos Indígenas, e da sociedade brasileira”, diz o texto.
O Ministério dos Transportes aponta como vantagens do empreendimento a redução de emissões de CO2, a redução do frete rodoviário, a arrecadação tributária, a geração de empregos e a “ampliação de ações de fiscalização contra expansão ilegal da fronteira agrícola”.
Em nota enviada à reportagem, a área técnica do Ministério do Meio Ambiente afirma que os estudos de impacto ambiental apresentados pelo empreendedor foram devolvidos pelo Ibama em março de 2021 e as adequações solicitadas pela equipe de licenciamento não foram apresentadas até o momento.
Pressão sobre os territórios
As terras indígenas funcionam como um escudo em relação ao avanço da degradação ambiental na região. Dentro das Tis o desmatamento total registrado é de 9,19 km². Quando consideramos a zona de amortecimento de 10km, esse número sobe para 799,82 km² – 8.703% a mais. O levantamento da reportagem, com base em dados do Prodes referentes ao período entre 2008 e 2022, identificou que mais de 95% da área desmatada que incide sobre os territórios está concentrada no município de Altamira, e afeta as Tis Baú (582,69 km²), Menkragnoti (159,38 km²) e Panará (23,11 km²), que respondem por mais de 80% da população indígena impactada pelo projeto na região.
Em outra frente, Novo Progresso concentra a área mais desmatada em relação às unidades de conservação – mais de 40% de um total de 3.955,28 km² de áreas protegidas devastadas ao longo do trajeto da ferrovia. Este é o município onde Bolsonaro obteve a maior votação proporcional na Amazônia durante o primeiro turno das eleições de 2022.
O desmatamento acumulado entre 2008 e 2022 atingiu aproximadamente 10% dos 98.862 km² analisados pela reportagem, segundo dados do Prodes. Os últimos quatro anos, que correspondem ao governo de Jair Bolsonaro, registraram 40% do desmatamento total nesta região.
BR-163 leva o desmatamento para os territórios
Meses depois da chegada do asfalto da BR-163 até Novo Progresso, em julho de 2019, o município foi o epicentro da ação criminosa conhecida como Dia do Fogo, quando apoiadores do ex-presidente incendiaram de forma deliberada a floresta às margens da rodovia. As queimadas se estenderam aos municípios de Altamira e São Félix do Xingu.
Com traçado paralelo à Ferrogrão, o entorno da BR-163 – quarenta quilômetros para cada lado da rodovia – responde por um total de 80% (7.918,78 km²) de desmatamento na área analisada pela reportagem.
“Quando a pavimentação chegou, o desmatamento avançou, o agronegócio avançou, já encostou na terra indígena”, afirma Doto Takak Ire. “A chegada do garimpeiro veio muito antes, foi junto com a abertura da BR-163. Quando a pavimentação foi chegando, aumentou os madeireiros também. A pressão está grande aqui. E agora o agronegócio chegou, fica difícil de a gente controlar. Isso está causando muito impacto, está preocupando.”
Nos últimos quatro anos, o percentual de desmatamento registrado pelos municípios nesta área foi mais que o dobro em relação ao observado na área total de cada um deles.
“É uma região de muitíssimo desmatamento desde a abertura da BR-163. Principalmente a partir do asfaltamento, você tem vetores de desmatamento que avançam em direção às unidades de conservação e terras indígenas”, aponta Juan Doblas, analista geoespacial da Global Earth Observation (GlobEO).
Junto aos pesquisadores Mauricio Torres e Daniela Fernandes Alarcon, Doblas acompanhou as consequências no território durante o processo de asfaltamento da rodovia. No livro Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento no sudeste paraense (IAA, 2017), eles apontam como a obra criou uma dinâmica de especulação fundiária que colocou o município de Novo Progresso no centro do desmatamento da Amazônia Legal.
“Esse desmatamento foi provocado por comerciantes locais que se capitalizaram através do asfaltamento da BR-163. É muito provável que um novo empreendimento, no caso a Ferrogrão, possa provocar um novo ciclo de desmatamento, através de mecanismos similares de capitalização e especulação fundiária”, aponta Doblas.
A economista Mariel Nakane, assessora técnica do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA), que acompanha o projeto da Ferrogrão desde 2018, defende que os estudos de viabilidade da ferrovia devem contemplar os impactos da BR-163, assim como todo o corredor logístico planejado para o escoamento de grãos pelos portos do Pará.
O asfaltamento da rodovia facilitou o processo de adensamento populacional e de ocupação verificado no entorno dos Territórios Kayapó e Panará próximos à estrada.
A presença maior de pessoas de fora no entorno dos territórios é a principal causa do desmatamento observado na proximidade das terras indígenas, aponta Nakane.
“Nesse contexto de falta de governança territorial e ausência de presença do Estado, essa facilitação de ocupação se transforma automaticamente em aumento de grilagem de terras públicas e de atividades ilegais, o que impacta essas terras. Elas aumentam o desmatamento das proximidades, as invasões para atividades ilícitas, como o roubo de madeira e garimpo.”
Território Kayapó
Com população aproximada de 1.450 pessoas, as Tis Baú e Menkragnoti estão localizadas no município de Altamira, próximas da divisa com Novo Progresso, e abrigam os povos Mebengôkre Kayapó, Mebengôkre Kayapó Mekrãgnoti e três povos isolados: Pu’rô, Isolados do Iriri Novo e Mengra Mrari.
Em um relatório sobre o avanço do garimpo no território Kayapó, a Rede Xingu+ aponta que essa atividade tem sido um dos principais vetores de desmatamento nesses territórios. Em meados de 2020, foi identificada a reativação de uma antiga pista de pouso na TI Menkragnoti, com cerca de 84 km de ramais conectados à pista e à área de extração de ouro, embargada em operações do Ibama e do ICMBio.
Segundo informações do Sirad X, sistema de monitoramento da Rede Xingu+, nos últimos cinco anos foram abertos seis novos focos de garimpo na TI Baú, além da reativação e da tentativa de retomada de lavras antigas.
Nesta terra, o desmatamento provocado pelo garimpo teve uma escalada sem precedentes nos últimos seis anos: uma área desmatada de 3,08 km², segundo o Prodes, de um total de 3,68 km² desmatados durante esse período.
Desmatamento na área desafetada do território
Parte da área desmatada no entorno da TI Baú já foi território indígena. Declarada de posse dos Kayapó em 1991, a TI passou por um processo intenso de conflitos que impediram sua demarcação física até o final daquela década, processo que só foi retomado em 2003, no início do primeiro governo Lula.
Para solucionar os conflitos em torno da demarcação, o Ministério Público Federal (MPF) em Santarém (PA) realizou um termo de conciliação e ajustamento de conduta que resultou na redução do território Kayapó em uma área maior que a Bélgica (3.492,69 km²).
O processo, que envolveu Funai, Polícia Federal, Prefeitura de Novo Progresso, lideranças indígenas Kayapó, associações de fazendeiros, posseiros e mineradores atuantes na região, foi efetivado pela Portaria nº.1.487/2003, assinada pelo então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
Com base nos novos limites territoriais, o processo de demarcação e homologação da TI foi concluído em 2008. O que aconteceu com o território desafetado da TI Baú é emblemático em relação à pressão do desmatamento no entorno do território. Em 2008, o desmatamento registrado na área que deixou de ser território indígena era de pouco mais de 4% (141,40 km²). Ao longo de 14 anos, esse território teve mais de 35% de sua área devastada (1.255,98 km²).
Território Munduruku
O garimpo que atinge as terras indígenas dos Kayapó também afeta os Munduruku que vivem na Terra Indígena Sawré Muybu, dividida entre os municípios paraenses de Trairão e Itaituba, que concentram mais de 20% do desmatamento na área analisada pela reportagem.
Em abril de 2022, a InfoAmazonia registrou a presença de uma draga de garimpo durante visita ao território. A TI Sawré Muybu foi reconhecida como território indígena pela Funai em 2016 e aguarda o processo de demarcação física, enquanto vê o desmatamento crescer no entorno do território. Dos 26,45 km² de desmatamento registrados pelo Prodes na área de influência da Ferrogrão, entre 2008 e 2022, mais de 70% (19,15 km²) foram registrados nos últimos seis anos.
“A gente vem enfrentando o problema do garimpo e chega uma ferrovia trazendo o desmatamento”, afirma Alessandra Munduruku, coordenadora da Associação Indígena Pariri, que representa os Munduruku do Médio Tapajós. Ela ressalta que o projeto da ferrovia deve considerar também o impacto dos portos em Itaituba. “O que chama a atenção é a quantidade de projetos de infraestrutura, projetos imensos que não são pensados para os povos tradicionais, não tem lugar para nós nesse conjunto de infraestrutura.”
Entre os impactos já percebidos no território, ela aponta a construção dos silos para armazenamento de grãos em Itaituba pelas empresas Bunge e Cargill, que geram especulação fundiária em Itaituba. “A maioria das comunidades está sendo pressionada para vender terras para essas grandes empresas.”
Alessandra Munduruku ressalta que as comunidades da TI Sawré Muybu devem ser consultadas a respeito do projeto, assim como os demais povos indígenas e comunidades tradicionais do entorno. “A consulta tem que ser dentro da aldeia, com o povo. O governo precisa ler os protocolos de consulta dos povos indígenas, porque eles estão dizendo como querem ser consultados.” Assim como os povos Kayapó e Panará afetados pelo projeto, os Munduruku também tem seu protocolo de consulta.
Estação em Matupá
Os estudos elaborados até o momento consideram apenas dois pontos de carga e descarga da ferrovia: no início e ao final do trajeto. O Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), concluído em outubro de 2015 pela empresa The Nature Conservancy (TNC), alerta que mudanças no desenho original, com a construção de carga e descarga intermediárias ou prolongamento do traçado, podem implicar em impactos ambientais e sociais não abordados no estudo.
Já o estudo de impacto ambiental do projeto, de novembro de 2020, considera a estação inicial em Lucas do Rio Verde (MT) com ponto final em Itaituba (PA). Nenhum deles aborda estações intermediárias para analisar os impactos da Ferrogrão, mas o caderno de demandas do empreendimento, também de 2020, projeta um cenário com uma parada no município de Matupá.
Juan Doblas considera que a estação intermediária em Matupá pode favorecer o cultivo de soja nas proximidades da TI Panará devido às condições de relevo do território, favorável ao cultivo do grão.
Na página de apresentação do projeto da ferrovia, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) diz que o traçado sugerido pelos estudos iniciais “não será de observância obrigatória à licitante vencedora”. Doblas alerta para o risco de que interesses políticos e econômicos na região possam levar à construção de outras estações intermediárias na região de Novo Progresso.
“No projeto não tem parada em Novo Progresso, mas no projeto original também não tinha parada em Matupá. Isso deixa bastante claro que, se as condições forem dadas, uma nova estação pode ser criada, o que provocaria um aquecimento brutal da região de Novo Progresso, com grupos interessados no desmatamento, um estoque de florestas muito grande e uma implantação crescente da soja. Uma nova parada poderia disparar a demanda por terras para plantar soja em toda essa região porque existem áreas com aptidão.”
Território Panará
O cultivo da soja no entorno do território indígena já é uma preocupação para os Panará.
“Precisamos do rio para viver. As nascentes do rio Iriri estão dentro das fazendas. Quando chove, o agrotóxico usado na plantação de soja chega até os nossos rios, contaminando os peixes e o nosso futuro. Em algumas aldeias há relatos de Panará com coceira, ferida e mal estar após tomar banho nessas águas poluídas”, conta Kunity Panará, secretário da Associação Iakiô Panará.
A associação foi criada em 2001 para defender a TI Panará, parte do território ancestral reconquistado por eles em 1991, após décadas de exílio imposto pela abertura da BR-163, e definitivamente demarcada em 1996. “Nossos avós e nossos pais sofreram muito com a construção da BR-163. Fomos expulsos de nosso território para que a rodovia fosse construída. Foi com muita luta que conseguimos retornar após 20 anos de exílio”, conta Kunity.
Durante o período de exílio, a população Panará foi reduzida a cerca de 70 pessoas. Após o retorno ao território, houve um aumento populacional e hoje são mais de 700 pessoas, número próximo ao registrado antes do primeiro contato com não indígenas, em 1973.
“Já fizemos o pedido ao Estado brasileiro e esperamos que a consulta seja feita o mais rápido possível. É obrigação do governo nos consultar antes do planejamento de qualquer obra que afete nossas vidas, temos o nosso protocolo de consulta que deve ser respeitado por todos”, afirma o indígena, que também atua como comunicador da Rede Xingu+.
Os impactos para além da área analisada
Um estudo conduzido por pesquisadores do Centro de Sensoriamento Remoto da UFMG simulou os impactos da estação intermediária em Matupá. Com a utilização do modelo OtimizaINFRA, que simula a logística de transportes no Brasil, eles concluíram que o terminal pode resultar na partição dos blocos contíguos das Tis Parque do Xingu e Capoto Jarina, devido à ocupação desses territórios ao longo da rodovia estadual MT-322.
A estimativa é que o terminal de Matupá aumentaria o tráfego para o transporte de soja nessa rodovia, hoje inexistente, para uma média de 174 caminhões por ano. “Logo, qualquer análise de impacto ambiental da Ferrogrão deve considerar toda a zona de influência do empreendimento, e não apenas os 10 km de cada lado da linha”, destacam.
“A gente sabe que não vai ter apenas esse impacto na zona de influência. Vai ter muito impacto social, ambiental e econômico. Quando a Ferrogrão sair, a tendência é a população chegar mais perto do território indígena”, afirma Ewesh Aura, assessor jurídico da Associação Território Indígena do Xingu (ATIX), que representa 16 povos da região e também integra a Rede Xingu+.
“A gente tem exigido do governo que faça uma consulta em relação a todos esses territórios que vão na direção da Ferrogrão. Vai ser muito importante para nós fazer parte desse projeto, porque muitas vezes a gente é excluído, eles decidem sem ouvir.”
No final de maio, representantes de dez povos indígenas e dezoito organizações da sociedade civil articuladas no Fórum Teles Pires se reuniram em Sinop, cidade onde está prevista a estação inicial da Ferrogrão.
Na Carta de Sinop, lideranças dos povos indígenas Boe-Bororo, Enawenê-Nawê, Xavante, Nambikwara, Munduruku, Kawaiwete, Kayapó, Ikpeng, Terena e Guajajara reivindicam o processo de consulta livre, prévia e informada junto aos povos indígenas e outras populações tradicionais.
Desde 2016 a Rede Xingu + reivindica o respeito ao Artigo 6º da Convenção 169 da OIT, que estabelece o direito de consulta aos povos tradicionais.
“A consulta livre, prévia e informada com os povos e comunidades tradicionais na área de influência desse corredor de escoamento de grãos é indispensável para o governo colocar na balança na hora de avaliar a viabilidade ou não do empreendimento”, aponta Biviany Rojas Garzon. Ela é uma das responsáveis pela elaboração do documento Diretrizes para a verificação do direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado no ciclo de investimento em infraestrutura, publicado em abril deste ano.
Garzon aponta que os impactos da Ferrogrão estão subdimensionados nos estudos feitos para o projeto, que desconsideram, inclusive, os riscos climáticos para o período de 65 anos de concessão da ferrovia.
Com a retomada do processo da ferrovia, a Rede Xingu+ protocolou junto ao TCU, ANTT e Ministério dos Transportes um documento que reforça essa reivindicação e pede a revisão dos estudos de viabilidade técnica e impacto ambiental feitos para o projeto.
O primeiro passo, aponta Garzon, é “tirar a limpo” a área de influência de 10 km, que ela considera “um erro fático, de interpretação” em relação à Portaria 60/2015. “A gente pede que na atualização do estudo de viabilidade seja redefinida a área de influência para que a partir dela possam ser identificados os povos indígenas e as comunidades tradicionais que precisam participar de um processo de consulta prévia, livre e informada sobre o empreendimento.”
Qual é a área de influência do empreendimento?
Consultada pela reportagem, a Secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do Ministério dos Povos Indígenas considera que os estágios iniciais da Ferrogrão já afetam as TIs próximas.
Em nota enviada à reportagem, a secretaria ressalta a necessidade de revisar o limite de dez quilômetros e aponta que há “muita incerteza” quanto às dimensões dos impactos ambientais e sociais que podem afetar os territórios indígenas. “Para ser dimensionado de forma exata, é necessário a realização de estudo técnico do local, considerando que os impactos causados pelo empreendimento podem causar danos irreversíveis e irreparáveis ao meio ambiente, bem como ao modo de vida dos povos indígenas ao redor, diante das mudanças drásticas no ambiente social destes”, diz a nota.
Tendo como base a Análise Cartográfica nº 550/15, a secretaria aponta 23 Terras Indígenas consideradas próximas ao traçado da ferrovia, sendo a TI Manoki a mais distante, a 224,94km do desenho previsto.
Fonte:
Por Leandro Melito, especial para o Joio e para a InfoAmazônia